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Ensaio GT 1 Educação Religiosa e Política: Análise comparativa entre La Faute à Fidel! e Machuca

Submitted by Jozelma on

 Análise comparativa entre La Faute à Fidel! e Machuca

Os filmes Machuca (2003) e La Faute à Fidel! (2006) possuem como pano de fundo ditaduras historicamente conhecidas. O primeiro tem como cenário a ascensão do fascismo no Chile, já o segundo, embora a história aconteça na França, o pano de fundo é o combate ao general franco na Espanha.

No entanto, as ditaduras não são o único ponto de convergência entre os referidos filmes, pois fica evidente também que a questão religiosa é importante no desenrolar da trama em ambos. Tanto em Machuca quanto em La Faute à Fidel! os protagonistas são crianças que estudam em escola confessionais, ou seja, de cunho religioso. E esta educação religiosa vai influenciar, diretamente, os conflitos ideológicos vividos pelos personagens principais destes filmes.

O termo “educação religiosa” pode denotar para o leitor ou espectador que existe um tipo específico de educação o qual está imbuído de uma ideologia também específica, a qual, nos referidos filmes vai se manifestar de maneiras muito diferentes por parte dos dirigentes das escolas, como será visto adiante. Além disso, é preciso ressaltar que em Machuca, o dirigente está centralizado na figura de um padre (McEnroe), e em La faute a Fidel! são as irmãs quem são autoridade máxima no recinto.

Em Machuca, pode-se dizer que o padre representa do ponto de vista histórico-cultural, aqueles primeiros cristãos que eram intimamente orientados pelo senso de justiça social, uma vez que foi ele o responsável, dentre outras coisas, por introduzir, no filme, os meninos de periferia no colégio tradicional Saint Patrick.  Rosa Luxemburgo, no texto O socialismo e as igrejas: o comunismo dos primeiros cristãos (1905) disse sobre os primeiros cristãos que surgiram em Roma, no declínio do Império Romano, e que se solidarizaram com a pobreza dos trabalhadores “fizeram a proposta da propriedade em comum - comunismo. O que é que poderia ser mais natural? As pessoas careciam de meios de subsistência e estavam morrendo de pobreza.”

Nesse sentido, ao promover a inclusão social de meninos pobres numa escola tradicionalmente elitista, o padre McEnroe, inspirado no governo de Salvador Allende (eis de onde advém a fala do amante da mãe de Gonzalo: “um poco rojo”), leva a cabo justamente a ideia de justiça social que esteve na origem do cristianismo de que fala a autora acima. Essa inclusão ocasionou um convívio rotineiro entre meninos de diferentes classes sociais, e daí nasce uma amizade muito especial entre Gonzalo e Machuca, permeada por contradições de classe. Isso fica visível aos olhos do espectador quando, por exemplo, ambos personagens visitam a casa um do outro, e deparam-se com algumas diferenças gritantes: Gonzalo tem o tênis adidas tão sonhado por Machuca, ao passo que o fato de Machuca ter como banheiro de casa um buraco cavado no chão soa, aos olhos de Gonzalo, nojento e estranho. Existe uma diferença gritante aí que só pode ser explicada pela desigualdade social que acomete Santiago naquele tempo de 1973, e que será enfatizada com o golpe militar ao governo de Allende.

            Quando o golpe militar é concretizado no Chile, o padre McEnroe é expulso da diretoria do colégio Saint Patrick, uma vez que qualquer pessoa minimamente interessada em apaziguar as diferenças sociais entre ricos e pobres era comumente taxada de comunista. Os militares assumem o comando da escola, e toda aquela inclusão promovida pelo padre é desfeita. Esse momento do filme é simbólico, porque demonstra claramente que o esforço individualista do sacerdote no intuito de reduzir as diferenças sociais, sobretudo no âmbito da educação, foi minimizado pela elite chilena amedrontada pelo ideal de igualdade.

Uma cena que ilustra esse medo advindo da elite é aquela em que o padre McEnroe deixa de falar sobre o evangelho na missa e abre a ocasião para que os pais possam discutir sobre a atual situação de violência que permeia os alunos do colégio. Em certo momento, a mãe de Gonzalo levanta-se e diz: “Qual é a ideia de misturar as peras com as maçãs? Não digo que somos melhores que outros, senão que somos distintos", numa demonstração clara de ressentimento em relação ao processo de inclusão iniciado pelo padre.

Porém, a partir dessas atitudes do padre que objetivam a inclusão, e sua a consequência, que é a amizade entre as duas crianças, é possível perceber como no filme Machuca, a escola, com seus princípios religiosos conduzidos por um personagem liberal, desempenha um papel mais forte que a família, e consegue contribuir para o enfraquecimento dos preconceitos, mesmo quando a família não procura fazê-lo, e as vezes é preconceituosa e conservadora.

A despeito do que acontece em Machuca, donde se vê que mesmo num colégio tradicional religioso existe um diretor e padre preocupado com questões sociais, em La faute à Fidel! tal preocupação não pode ser observada na figura das irmãs do colégio, e esse não é o fato mais preocupante no filme, pois o que é mais agravante em La faute à Fidel! é a repressão do colégio católico às opiniões individuais; ou seja, em La faute à Fidel! o espectador se sente diante de uma instituição católica em que as representantes dela estão a serviço da opressão. A cena final do filme ilustra muito bem o silenciamento e a opressão como realidades bem típicas de certo fanatismo religioso que não sabe reconhecer diferentes opiniões, pois Anna contesta a frase "a cabra foi comida pelo lobo por desobediência" dita pela irmã e professora, dando um exemplo de cidadania e rebeldia às outras alunas ao contestá-la com argumentos sólidos, porém, ao final, a irmã sabendo-se vencida ou não querendo assumir a postura correta da aluna, a pede para sentar.

Além disso, Anna, a personagem principal do filme, vive um contraste muito grande entre a situação do seu próprio ambiente familiar e o da escola onde estuda, pois após a morte do tio da referida protagonista, na Espanha, os pais de Anna se envolvem na luta contra a ditadura e esta personagem começa a vivenciar as ideologias comunistas em casa, nas conversas dos pais com os grupos de revolucionários que frequentam, quase que diariamente, o ambiente da família. Então, Anna, por sua vez, tenta levar para a escola, numa das cenas do filme, o “espírito de grupo”, tão falado pelo seu pai, ao responder, incorretamente, uma questão perguntada pela freira, para apoiar os seus colegas de classe, mas, ela percebe que ficou prejudicada neste momento. Assim, o filme demonstra que as “ideias comunistas” não se adaptam tranquilamente ao ambiente religioso, tradicional e, em certa medida, opressor, como já foi visto aqui.

Enfim, é possível perceber que em Machuca a educação religiosa corrobora a ideologia de igualdade social, tão cara no momento histórico mostrado no filme, e que questiona a opressão provocada pela ditadura, pois é emblemática também a cena em que as duas crianças, protagonistas do filme, confessam o seu desejo de se tornar padres, tendo em vista o exemplo de justiça social promovido por McEnroe. Já em La Faute à Fidel!, pode-se dizer que a escola reforça o sistema opressor, e, além disso, os pais de Anna a retiram das aulas de catecismo, o que denota mais ainda as discrepâncias ideológicas tão latentes no momento histórico-social retratado no filme.